Lençóis de vento
Dunas e lagos azuis que não param no lugar
Se você foi aos Lençóis em maio e voltar lá agora, em outubro, pode levar um susto: cadê as lagoas que estavam aqui no primeiro semestre? É que o deserto maranhense vive se mexendo, um fenômeno de autoria da dupla água e vento.
Com as chuvas que caem na primeira metade do ano, afloram os lençóis freáticos (de água subterrânea). A água então vai se acumulando nos vales entre uma duna e outra, formando lagos de água doce, alguns com mais de cem metros de extensão. Em agosto, porém, pára de chover. Aí, o sol quente, com temperatura média de 32 graus, seca os lagos. Em dezembro, é só areia, apenas os rios resistem. Em janeiro, o ciclo de chuvas se repete e as lagoas voltam a se formar. Mas todo ano elas mudam de lugar e contorno, acompanhando a movimentação das dunas.
Os montes de areia andam graças aos alísios, ventos que sopram na parte mais baixa da atmosfera, sempre na direção litoral-interior. “Alguns cálculos indicam que as dunas avançam entre 15 e 20 metros por ano”, conta o geógrafo Antônio Cordeiro Feitosa, da Universidade Federal do Maranhão. O movimento nunca pára e, numa dessas, a areia já soterrou vilas e até um aeroporto, em 1979, na cidade de Tutóia. O deserto vai crescendo. Há relatos indicando que, no início da década de 70, os Lençóis se estendiam apenas 20 quilômetros continente adentro. Hoje, alcançam 50 quilômetros.
Os rios que alimentam o mar e a terra
Em nenhum canto do planeta o mar é capaz de produzir areia. Ele a consome, isso sim. Nos Lençóis, quem produz os grãos são os rios. Eles escavam o leito por onde vão passando e carregam minúsculos fragmentos de rocha rumo ao litoral. Um dos principais é o Parnaíba, que desemboca na divisa entre Piauí e Maranhão e arrasta sedimentos até o mar. As correntes marítimas no Brasil se movimentam de sul para norte e vão espalhando os grãos pela costa.
As marés – duas altas e duas baixas no mesmo dia – lançam sobre a praia uma areia composta por grãos muito finos. Com o sol, ela seca e os ventos fortes, especialmente em outubro e novembro, levam-na de volta ao continente. O ar razoavelmente seco facilita o transporte. Assim que encontram um obstáculo, que pode ser um pequeno arbusto, uma pedra ou mesmo outra duna, os grãos se depositam na superfície.
O principal tipo de duna que se forma nos Lençóis é chamado de barcana. Ela se parece com uma meia-lua (veja o infográfico acima) e a parte convexa, a “barriga”, fica voltada para a direção do vento. A areia se acumula no topo da duna e depois, por desmoronamento, escorrega para trás. “Esse processo, que já espalhou areia por 270 quilômetros de extensão ao longo da costa e 50 quilômetros para o interior, começou cerca de 11 000 anos atrás”, diz o geólogo Edgard Freitas Parouco. “E não vai parar tão cedo. Os rios devem continuar carregando sedimentos por pelo menos mais alguns milhares de anos”.
Lençóis de água
Ciclos naturais mudam a rotina da paisagem
Além das famílias que teimam em morar no deserto, mudando cada vez que as casas são invadidas pela areia, os Lençóis servem de moradia para várias espécies de animais. No cerrado que contorna as dunas encontram-se guaxinins e macacos do tipo guariba e prego. A porção costeira serve de abrigo para pássaros que migram do Pólo Norte e para a desova de tartarugas marinhas. Até uma nova espécie de tartaruga de água doce foi encontrada na região (veja abaixo).
Mas o ciclo natural mais curioso dos Lençóis acontece nas lagoas. Quando a chuva chega, em janeiro, elas se enchem de peixes como se fosse mágica. Mas não é. Durante a seca, os animais domésticos da região deixam fezes na areia. Quando vêm as águas, o dejeto vira comida para as larvas de insetos, o alimento preferido dos peixes. Algumas lagoas crescem tanto que se ligam a braços de rios ou lagoas já formadas, proporcionando o vai-e-vem aquático e a multiplicação dos peixes. Assim, as novas lagoas fazem a alegria dos pescadores. “Pode ser que também existam lá peixes que põem ovos resistentes à falta de água”, diz o biólogo Antônio A. Rodrigues, da Universidade Federal do Maranhão. “Esses ovos provavelmente ficam enterrados na lama que sobra onde havia a lagoa e, com a chuva, se abrem.”
Dois oásis resistem no meio do deserto
Existem dois focos de vegetação em Lençóis. O maior se chama Queimada, com 6 quilômetros de extensão por 3 de largura, formado de arbustos e árvores de frutos tropicais, como caju, que servem de alimento para a população local. “Realizamos um estudo e encontramos ali espécies características da Mata Amazônica”, diz o biólogo Nivaldo de Figueiredo, da Universidade Federal do Maranhão. Para ele, as plantas podem ser resquício da mata pré-Amazônica que deve ter coberto parte do Maranhão até três milhões de anos atrás.
O outro oásis é Baixa Grande, com características parecidas e metade do tamanho de Queimada. Com certeza já foi maior. “Sempre encontramos troncos enterrados no deserto”, conta Nivaldo. Só não se sabe por que os dois focos de flora ainda não foram cobertos pela areia. Os biólogos acreditam que, por serem mais úmidos, eles brecam o avanço das dunas.
Fora dali, a flora ainda teima nos Lençóis. Nas margens dos rios a vegetação é de mangue, baixa e pobre porque o solo é salino. Mas, como nada é comum nesse lugar, as árvores chegam a 15 metros de altura. “Não se conhecem árvores de mangue tão altas em todo o Brasil”, diz Nivaldo. Rodeando o deserto encontra-se o típico cerrado, com plantas retorcidas e de casca grossa. Bem menos exuberantes que os manguezais ou os oásis, são essas árvores baixas que, barrando a passagem da areia, conseguem conter sua fúria e evitar que elas cubram as cidades que se instalaram ao redor do parque.
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